A análise dos dados extraídos da pesquisa JB-IBPS inseridos no contexto político e ideológico atual, provoca-nos a sensação de uma consulta inoportuna. Em todos os sentidos, a discussão neste momento sobre a proibição do comércio de armas de fogo e munição no Brasil contribuiu mais para confundir do que para esclarecer uma já perplexa opinião pública, sem verdadeiramente contribuir para o aprofundamento do debate acerca da violência e da política de segurança pública. A contundente vitória do “Não” no referendo de hoje, anunciada pela pesquisa, deve levar-nos a duas grandes reflexões: uma sobre como será o Brasil pós-referendo e uma segunda refere-se ao uso que se pode ou deve fazer do instrumento do referendo.
O referendo, como o plebiscito, é um meio de expressão direta da cidadania, cumprindo função diferente das eleições dos representantes. Na democracia direta, somos chamados a decidir sobre uma questão específica, sobre um tema de sociedade, como o regime político, o aborto ou a pena de morte. Os Estados Unidos aproveitam as eleições gerais para fazer o eleitor se posicionar em vários referendos locais, o que torna a discussão mais pertinente, mais real, embora não menos politizada e ideológica. No Brasil de dimensões continentais, um referendo (ou plebiscito) nacional aparece sempre como uma abstração. O que pode significar para o caboclo do Pará a diferença entre parlamentarismo e presidencialismo?
Acrescente-se a isso tudo a atual crise política e moral, o descrédito generalizado nas instituições públicas, em especial na polícia, e a manifesta ineficácia das políticas de segurança nos três níveis de governo e está preparado o caldo cultural em que o “Não” surge como uma resposta quase inevitável enquanto o “Sim” aparece como um devaneio de artistas e intelectuais, naquilo que parece ser sua “louca ingenuidade”.
A vitória do “Não” na pesquisa JB-IBPS representa uma condenação geral à insensibilidade da classe política que freqüentemente desloca o foco dos grandes problemas nacionais para temas que refletem mais seus próprios interesses. A grande maioria dos brasileiros acompanhou a campanha na televisão, mas só 60% acham que ela contribuiu para esclarecer a população sobre o que estava em jogo nesta votação. Daí circularem na internet as mais diferentes versões sobre interesses escusos que se esconderiam por trás de cada opção. Sabe-se que o boato medra e viça nas zonas cinzentas da desinformação. A impressão geral é de que vamos às urnas sem saber muito bem por que ou para quê. Vê-se ainda que a vivência da violência influencia decisivamente a opção, com 65% dos que declararam ter sofrido algum crime nos últimos 30 dias, escolhendo o “Não”. As pesquisas de vitimização mostram que “sensação de violência” é real e corresponde à experiência cotidiana da pequena delinqüência, dos furtos e roubos nas cidades brasileiras, que atinge indiretamente quase vinte milhões de brasileiros. Como imaginar que, num contexto destes, se possa apelar para o desarmamento, em que a opção pela proibição às armas aparece como um ato unilateral da população sem a necessária contrapartida do governo? Muitos hoje não estarão votando propriamente pelo “direito” de comprar armas, mas contra a inércia governamental na área da segurança pública.
Se a vitória do “Não” é um fato, como será o Brasil pós-referendo? Vamos ver uma corrida às armas, cujo uso aparentemente seria visto como livre? Não é o que se anuncia. Muitos votarão no “não” menos por instinto belicista que para dar “uma lição nos políticos”. A maioria não deseja ter uma arma em casa, mas não se sente segura em “fazer a sua parte” sem que as autoridades façam a sua. As mortes por arma de fogo continuarão concentradas nas periferias urbanas, dizimando o mesmo jovem negro e pobre, que morre três vezes mais que a média, ou nas áreas rurais de conflito de terra. A política voluntária de desarmamento, que já recolheu mais de 450 mil armas, seguirá seu curso, pois não está em jogo neste referendo.
Por último e mais grave, cabe perguntar se estamos sabendo usar o referendo. Num país múltiplo, plural e continental como o Brasil, um referendo nacional sempre sofrerá de um déficit de legitimidade se não refletir as grandes inquietações nacionais. Ouve-se amiúde nas ruas: Por que não propor um referendo sobre a cassação dos políticos? Ou sobre o desemprego? E o caos na saúde pública, não mereceria um referendo? É preciso que repensemos o recurso ao referendo para que a democracia direta com que muitos temos sonhado não caia no descrédito da ineficácia. É, por isso, importante que, para além do resultado do pleito, possamos todos nós, sociedade e classe política, refletir sobre os usos que podemos fazer desta democracia que conquistamos.